Enquanto o camponês olha para o céu, desejando mais chuvas para garantir a lavoura, motoristas sintonizam o rádio impacientes no trânsito das grandes cidades, na expectativa de que os carros da frente andem um pouco e eles possam chegar e abraçar a tv ou o computador, com a esposa, ou os filhos, emitindo longínquas frases, na tentativa de um diálogo impossível, pois o telejornal anuncia a aflição do investidor, que, por sua vez, aguarda, angustiado, um sinal da elevação dos preços das ações, na Bolsa de Valores. Os banqueiros respiram tranquilos: os dólares salvarão os Bancos.
No quarto, os jovens alimentam o ego com a adição de mais um amigo do Orkut e driblam a solidão com uma descontraída conversa no MSN. Na mesa, ao lado, o livro de história do Brasil repousa, silencioso, encolhido em suas páginas, onde falsos heróis, ávidos pelo reconhecimento de suas façanhas, padecem pela indiferença e por serem substituídos pelo ídolo da música, do cinema ou do desenho japonês.
Os metrôs e os ônibus desfilam, lotados de pessoas vistas, pela maioria dos médicos, empresários, bispos e políticos como um aglomerado, cujo coletivo é mercado, embora carreguem suas dores, seus sonhos, sua humanidade e suas individualidades, fragmentadas pela produção tecnológica, que faz um produto para cada parte do corpo e vários falsos para o espírito.
A noite borbulha em sua efervescência, em suas liberdades modernosas, com a angústia exigindo viagens pelas drogas, ou sugerindo a catarse deliciosa nas mesas dos bares, nos romances noturnos, nas efêmeras companhias, que não encostarão a cabeça no travesseiro ao lado, quando a madrugada der a ordem para o retorno inevitável com o confronto consigo e a impertinente auto-avaliação, durante a vigília, antes da chegada do sono.
Discussões, aparentemente sérias, especulam sobre os desdobramentos do aquecimento global; tragédias familiares, transformadas em novelas cotidianas, despertam a atenção do grande público que parece aliviar-se na dor dos outros. A mídia provoca o terror, durante a programação, mas oferece o consolo nos intervalos, num jogo sutil, imobilizador da grande massa, e a revolução passa ao largo, achincalhada pela retórica onde a justiça material é um escopo ultrapassado e o justo é o direito de cada um votar em quem jamais vai defender os interesses da maioria.
O carro ainda está lá, no trânsito, com o motorista, seja londrino ou nordestino, contando os anos ainda a viver e comparando o patrimônio material com os dias já vividos, até ali. Outros pensam, cada qual com sua sutileza cultural, se a vida é só aquilo mesmo ou se há de aparecer uma grande novidade, seja vinda do céu, seja feita aqui na terra mesmo. Ambos dormem sob a pressão de viver seu sonho, de buscar um sentido verdadeiro e duradouro para a vida. Ambos querem ter a certeza de que a vida não é uma ilusão e o dinheiro realmente não mede o valor das coisas.
Os templos permanecem cheios de bons espíritos, conduzidos, muitas vezes por mercenários. As religiões subsistem com seus fundamentos e mandamentos perdendo a força, porque a civilização avança e a cultura se consolida, transformando princípios, antes inquestionáveis, em obsoletos. O Papa reza na internet e o Pastor aposta em novelas. Os monges buscam orientalização do mundo e, junto com boas filosofias, enviam seus incensos para mostrar que a fumaça pode ter um cheiro agradável. O Nirvana desafia o Espírito Santo, disputando, palmo a palmo, a atenção apaixonada dos devotos. Maomé observa sentado em seu chão untado pelo óleo negro e olhinhos puxados adormecem com Nova York em seu sonho de consumo.
O garoto, do quarto, aposta num jogo violento, para ele mais divertido do que a tabela periódica. O sol nasce e se põe e a lua brilha, em suas fases, e não pensem que os poetas a esqueceram. Sim, os poetas e as poetisas ainda existem, porque as palavras são de propriedade do espírito humano. Nenhum governante, tirano, mercenário, banqueiro, garoto agressivo, ou deficiente de sensibilidade pode impedir que os poetas e as poetisas sintam que o mundo não é só isso relatado acima. Da vida, amarga e brutal, em seu contexto coletivo, eles apuram a essência, que só o coração dos artistas pode sentir e dizer. Por isso, amem os poetas e a poesia, eles têm uma história mais verdadeira para contar do que a vista pela fresta do cotidiano indesejável. Porque, até a amargura, presente na poesia, vem apresentada com musicalidade, e a dor passa a ser a expressão ritmada da intimidade, da existência real, da verdade mais oculta, revelada pela liberdade de dizer que a vida não é uma ilusão. É uma dádiva, não recebida, é uma dádiva sentida.
Paulo Viana
No quarto, os jovens alimentam o ego com a adição de mais um amigo do Orkut e driblam a solidão com uma descontraída conversa no MSN. Na mesa, ao lado, o livro de história do Brasil repousa, silencioso, encolhido em suas páginas, onde falsos heróis, ávidos pelo reconhecimento de suas façanhas, padecem pela indiferença e por serem substituídos pelo ídolo da música, do cinema ou do desenho japonês.
Os metrôs e os ônibus desfilam, lotados de pessoas vistas, pela maioria dos médicos, empresários, bispos e políticos como um aglomerado, cujo coletivo é mercado, embora carreguem suas dores, seus sonhos, sua humanidade e suas individualidades, fragmentadas pela produção tecnológica, que faz um produto para cada parte do corpo e vários falsos para o espírito.
A noite borbulha em sua efervescência, em suas liberdades modernosas, com a angústia exigindo viagens pelas drogas, ou sugerindo a catarse deliciosa nas mesas dos bares, nos romances noturnos, nas efêmeras companhias, que não encostarão a cabeça no travesseiro ao lado, quando a madrugada der a ordem para o retorno inevitável com o confronto consigo e a impertinente auto-avaliação, durante a vigília, antes da chegada do sono.
Discussões, aparentemente sérias, especulam sobre os desdobramentos do aquecimento global; tragédias familiares, transformadas em novelas cotidianas, despertam a atenção do grande público que parece aliviar-se na dor dos outros. A mídia provoca o terror, durante a programação, mas oferece o consolo nos intervalos, num jogo sutil, imobilizador da grande massa, e a revolução passa ao largo, achincalhada pela retórica onde a justiça material é um escopo ultrapassado e o justo é o direito de cada um votar em quem jamais vai defender os interesses da maioria.
O carro ainda está lá, no trânsito, com o motorista, seja londrino ou nordestino, contando os anos ainda a viver e comparando o patrimônio material com os dias já vividos, até ali. Outros pensam, cada qual com sua sutileza cultural, se a vida é só aquilo mesmo ou se há de aparecer uma grande novidade, seja vinda do céu, seja feita aqui na terra mesmo. Ambos dormem sob a pressão de viver seu sonho, de buscar um sentido verdadeiro e duradouro para a vida. Ambos querem ter a certeza de que a vida não é uma ilusão e o dinheiro realmente não mede o valor das coisas.
Os templos permanecem cheios de bons espíritos, conduzidos, muitas vezes por mercenários. As religiões subsistem com seus fundamentos e mandamentos perdendo a força, porque a civilização avança e a cultura se consolida, transformando princípios, antes inquestionáveis, em obsoletos. O Papa reza na internet e o Pastor aposta em novelas. Os monges buscam orientalização do mundo e, junto com boas filosofias, enviam seus incensos para mostrar que a fumaça pode ter um cheiro agradável. O Nirvana desafia o Espírito Santo, disputando, palmo a palmo, a atenção apaixonada dos devotos. Maomé observa sentado em seu chão untado pelo óleo negro e olhinhos puxados adormecem com Nova York em seu sonho de consumo.
O garoto, do quarto, aposta num jogo violento, para ele mais divertido do que a tabela periódica. O sol nasce e se põe e a lua brilha, em suas fases, e não pensem que os poetas a esqueceram. Sim, os poetas e as poetisas ainda existem, porque as palavras são de propriedade do espírito humano. Nenhum governante, tirano, mercenário, banqueiro, garoto agressivo, ou deficiente de sensibilidade pode impedir que os poetas e as poetisas sintam que o mundo não é só isso relatado acima. Da vida, amarga e brutal, em seu contexto coletivo, eles apuram a essência, que só o coração dos artistas pode sentir e dizer. Por isso, amem os poetas e a poesia, eles têm uma história mais verdadeira para contar do que a vista pela fresta do cotidiano indesejável. Porque, até a amargura, presente na poesia, vem apresentada com musicalidade, e a dor passa a ser a expressão ritmada da intimidade, da existência real, da verdade mais oculta, revelada pela liberdade de dizer que a vida não é uma ilusão. É uma dádiva, não recebida, é uma dádiva sentida.
Paulo Viana