sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Família, Sociedade e Desagregação

Por sugestão, vou escrever sobre a desagregação da família. Um assunto complexo que, se aprofundado, teríamos que começar com o significado de família desagregada e quais os motivos que causam a desagregação. Isto exigiria uma pesquisa profunda, e teríamos que escrever um livro e não um texto de uma lauda. Por isso vou apenas expressar minha opinião. Mas o que é família, hoje?
Sabemos que o conceito de família mudou significativamente e não se considera mais apenas o núcleo que tinha o pai, a mãe e os filhos. É um conceito que varia muito e que, em algumas culturas, por exemplo, quem compartilha a mesma geladeira, no mesmo ambiente, forma uma família. Mas, quais são os efeitos nos filhos e na família, provocados por essas mudanças? A participação do pai, provedor, já não tem o peso que tinha antes, pois grande parte das mulheres está no mercado de trabalho, é separada do marido, ganha dinheiro e pode prover a casa, garantindo alimento e outras necessidades, embora muitas delas contem com a pensão dos ex-maridos para ajudar nas despesas. Nestes casos, portanto, o pai, embora tenha saído de casa, continua sendo provedor, além de reprodutor. A ausência do pai pode causar prejuízos afetivos para ele e para os filhos, pode ter como desdobramento, por exemplo, uma educação mais frouxa e consequentemente um desequilíbrio na assimilação dos valores positivos, antecipando experiências. Se a mãe consegue sozinha manter esse equilíbrio, e muitas conseguem, impondo limites, definindo regras e monitorando, na medida do possível, as novas experiências, os filhos terão uma educação disciplinada. Claro que esta é uma visão generalizada e temos que ter o cuidado de considerar que a formação de uma personalidade não depende só do meio, o potencial genético é válido no produto final. As conseqüências variam caso a caso, com relativa prevalência de prejuízo às famílias, nos casos de pais e mães ausentes, pois a mãe também está ausente, visto que muitas trabalham fora. Como realizar o papel da fonte afetiva, dar a atenção devida e monitorar as experiências? Esta e outras variantes devem ser consideradas, para esta avaliação: A cultura, os costumes, a economia, os valores religiosos e outros fatores que dependem da região em que tivéssemos concentrado a nossa análise.
Quero dizer, no entanto, que, a despeito das mudanças radicais que ocorreram, principalmente nas sociedades ocidentais, o ser humano continua psicologicamente sendo a síntese de dois elementos básicos: o feminino e o masculino (anima e animus, segundo Jung), independendo do sexo que tenha, e, mesmo depois que fica adulto, mantém os dois elementos atuantes em sua matriz psicológica. Logicamente que, na maioria dos casos, o masculino prevalece nos homens e o feminino prevalece nas mulheres.
É fácil concluir que: se em seu desenvolvimento, até a chegada da fase adulta, o ser humano conta com uma relação sistemática com referenciais masculinos e femininos, e sejam estes o pai e a mãe, é provável que a possibilidade de manter certo equilíbrio em sua afetividade, com maior abertura para uma evolução em sua maturidade emocional e uma harmonia em suas relações sociais, seja maior. Claro que nem sempre é harmonioso e, pelo contrário, as brigas frequentes entre os pais prejudicam razoavelmente os filhos, sendo melhor, em alguns casos, que a estrutura do núcleo seja quebrada para que a harmonia seja recuperada. Mas o ser humano é perfeitamente capaz de se adaptar a novas situações. Por isso creio que, em curto prazo, os filhos já não sofrerão tanto com a ausência do pai no acompanhamento do seu crescimento e, mais tarde, até mesmo da mãe. Experiências de “casais” homossexuais, adotando filhos, já estão acontecendo e em breve teremos a demonstração de que o importante é o amor, o carinho e a atenção adequada, independendo de quem seja os que têm o papel de educar. Para uma boa formação dos filhos, os sentimentos que fluem no ambiente em que vivem são mais importantes do que as pessoas. Pais e mães, nas versões tradicionais, podem ser também prejudiciais aos filhos.
As figuras do Pai e da Mãe são fortes elementos arquetípicos e estão na estrutura psicológica dos filhos. Eles são as primeiras fontes externas dos estímulos necessários, para a concepção de si mesmo e para reconhecimento do outro. Se agredirem, se incomodarem, forem desagradáveis e ferirem, certamente terão uma influência na personalidade muito diferente se, ao contrário, eles forem carinhosos, afetivos, demonstrarem amor e transmitirem segurança. Nos “casais” homossexuais, esperamos uma adaptação e passarão a ter primazia os aspectos feminino e masculino, como fontes dos referidos estímulos. Não causando nenhum prejuízo à criança, pelo contrário, ampliando o sentido de ser humano e levando-o a reconhecer os elementos básicos de sua psique, que não são necessariamente o Pai e a Mãe e sim o masculino e o feminino. Mesmo que, nos casos dos homossexuais, eles apareçam evidenciados nas matrizes sexuais opostas. Afinal o masculino e o feminino são atributos do espírito humano, embora sejam utilizados para caracterizar diferenças corporais. Eles transcendem a referência sexual. Restará à sociedade entender e não hostilizar os filhos dos homossexuais.
Não podemos, para finalizar, atribuir apenas aos pais, a culpa pela desagregação familiar, quando temos os péssimos exemplos dos responsáveis pelas leis, pela ética pública, pela moral religiosa, pela educação e pelo entretenimento. A família é um reflexo da sociedade. A decadência é da sociedade patriarcal. Isto é a evolução natural das civilizações, que tendem a chegar ao ápice e depois decair, até a sua dissolução total. A desagregação familiar é apenas um sinal do começo dessa decadência. É o início da transição para uma nova civilização, feminina, não matriarcal, não hegemônica e sim partilhada, porém com a marca da delicadeza do espírito feminino. Esperamos que as mulheres, com a ajuda dos homens, consigam erguer essa civilização mais sólida e os novos conceitos de família sejam definitivamente incorporados à sociedade, sem preconceito e afirmando valores legítimos, que atuem positivamente no equilíbrio psicológico das novas gerações.

Paulo Viana

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Identidade

Tenho na alma, pedaços da Arábia trazidos pelos navegantes portugueses, semeados nas negras e nas índias que aqui se encontravam. Por isso, quando escuto a música árabe há uma ressonância em minha emoção e sentimentos me trazem o Alcorão e Maomé parece-me mais próximo do que Roma. Tenho, também, fragmentos de Lisboa, pois um Fado que ouço é uma canção que acalanta o berço de lembranças não lembradas, mas que se fazem presentes em lampejos de sutil nostalgia.
Tenho em minha alma o espírito guerreiro do índio Guarani, que respeita a floresta, que se deixa levar pela correnteza do rio, quando o caminho é na mesma direção que ela, mas que a enfrenta em nado se for preciso ir contra a corrente. Por isso, vejo o Gavião Real como um parceiro do mundo, que adorna o índio, mas que se mostra como um recado para os exterminadores. Por isso, entro na mata como quem entra na morada de espíritos. Por isso, sinto, como o índio, grande tristeza pela maldição dos iconoclastas de Tupã, pelos corruptores dos Pajés, pela disseminação dos vícios e das doenças dos “brancos”.
Minha alma é também feita do banzo das senzalas, da saudade da Mãe África, trazida nos porões dos navios pelos mercenários cruéis, a mando dos Reis e com a benção dos Papas. Por isso, quando batem os tambores do Candomblé há um despertar, em meu espírito, de uma remota afeição, de um querer venerar. Por isso, a batida do samba encontra em meu corpo os contornos adequados para uma vibração ritmada e cada compasso é tocado como se fosse reflexo de minha alegria. Por isso me vejo na melancolia do Blues, que lamenta em seu ritmo lento a odisséia de príncipes, princesas e guerreiros africanos, aprisionados sem nenhuma culpa; cântico que parece apelar aos deuses uma volta no tempo, uma recontagem da história, onde o povo africano não fosse aviltado; onde os navios singrassem os mares sem a angustia da liberdade usurpada e a riqueza do mundo fosse alicerçada com trabalho justo.
Tenho na alma a ambição dos degredados, por isso me custa mais fazer o exercício da honestidade, porque em meu mundo há o desprezo pela ética. Mesmo assim, busco ser honesto e não me submeto ao jeitinho e nem à propina. Tenho, também, na alma, o sentimento de povo e luto para conservar meus valores, minha cultura e abomino a invasão colonialista da globalização, embora reconheça a força com que ela massacra nosso apego ao que nos faz uma Nação. Tenho ainda, na alma, o grande desejo de lutar sempre pela liberdade e pela justiça, quando estas forem ameaçadas, como ainda são, por isso ainda luto, com minha arma, que é a palavra.
Tenho orgulho de em minha alma conter a grandeza da Arábia, da África e da América, em pedaços trazidos pela Europa. Tenho orgulho de ser brasileiro, porque sou alma cosmopolita, sou cidadão cuja Pátria tem o suor do calor do deserto árabe; tem a graça da capoeira, um belo legado da agilidade e da inteligência dos negros; tem o pueril mundo indígena e a sua parceria com a floresta, onde nos ensina que não podemos viver sem os outros entes da Natureza.
Assim busco minha identidade: Reconhecendo que minha história começa com a ambição colonialista dos europeus, que aprenderam a arte da guerra e da navegação com os árabes, escravizaram os africanos e corromperam os ameríndios. Com todo respeito aos europeus contemporâneos, sinto-me feliz por ter herdado mais as qualidades de todos esses povos do que os defeitos que traziam em nome dos nobres e religiosos.
Paulo Viana