quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Continuação de A Poesia e o Delírio
Um silêncio invadiu o carro, talvez com a missão de deixá-los recompor-se após aquela revelação. A ambigüidade da situação confundiu suas mentes e seus sentimentos. Para ele havia uma alternância entre tensão e alívio, para ela medo e contentamento. Mas, ela queria entender tudo aquilo:
- Mas...Nós mal nos conhecemos...
- Eu a conheço, acho que há mais de um ano.
- Um ano? Mas eu...
- Eu sei...Você não me via, mas eu a olhava, quase que diariamente, atravessando a praça. E cada passagem sua era o parto de um poema. Você é tão bonita que é impossível passar despercebida e, para os poetas, como eu, a natureza quis definir a beleza e a aí você nasceu.
- O senhor está exagerando.
- Pode me tratar por você.
- Está bem. Acho que você exagerou, Sérgio, eu não sou isso...
- Leia esse livro. Ele fala o que eu sinto e como vejo você.
- É verdade? É sobre mim mesmo? Você não estava brincando?
- Pode acreditar. O lançamento dele é daqui a duas semanas.
- Eu não sei nem o que dizer mais.
- Não diga nada, só leia o livro.
Chegaram à casa de Sérgio. Ele agradeceu a carona e desceu. Ela agradeceu o livro e os dois trocaram números de telefones. Ela disse para ele seguir as recomendações médicas.
Em casa, deitado em sua cama, olhando o teto, Sérgio respirava fundo para oxigenar o cérebro e recuperar o fôlego que parecia ter prendido enquanto conversavam. Lembrou do sonho que o orientava como abordá-la e riu. No sonho alguém dizia para ele falar com o coração que aquele livro era totalmente inspirado nela. Seu coração usou sua própria linguagem para dizer isso. Patrícia, absorta em pensamentos, dirigia e imaginava o que tinha naquele livro, ainda sem acreditar que era inspirado nela. Tinha consciência de sua beleza, mas jamais imaginara que chegasse a ser motivação para alguém escrever poemas sobre ela. Até namoros estavam difíceis, não por falta assédio, mas por falta de tempo e de opções razoáveis. Como toda mulher muito bonita, tinha dificuldades em manter seus relacionamentos, principalmente por que os homens que dela se aproximavam ficavam possessivos, inseguros e paranóicos. Era o preço de ser tão bela. Aquela manifestação de romantismo a surpreendia: um livro inteiro de poemas sobre ela?
Antes mesmo do banho, Patrícia pegou o livro e o abriu na dedicatória: “Para a mulher cuja existência deu vida a esses poemas”. Na orelha do livro tinha dados biográficos do autor, onde dizia ser ele Jornalista, Professor de Literatura e Poeta. Aquele era o terceiro livro a ser publicado. Tinha quarenta anos e trabalhava em um grande jornal, embora usasse pseudônimo para seus artigos que tratavam sobre o cotidiano. O primeiro poema já a deixou sem graça:
Eis que me surpreende a vida
Dando-me tua imagem
E a tarde, antes apenas áspera tarde,
Solitário complemento do dia,
Enche-se de uma maciez plácida,
De um aveludado deslizar do tempo,
De um ritmado caminhar.
Eis que me revolve a verve apaixonada da poesia
E o manto raro da inspiração
Deita-se em meu peito
Sugando as primeiras batidas de um novo coração
Levando às minhas mãos palavras
Cravando no papel versos
Versos que querem dizer:
Se existes, se podes ser tão bela
Impossível é não existir, também, o amor.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Continuação de A Poesia e o Delírio
Os funcionários do hospital tentaram encontrar uma pessoa da família para avisar que ele estava internado por causa de um ataque cardíaco. Na lista do seu celular, conseguiram falar com um editor de livros, um jornalista, um motorista de táxi, uma massagista, dois amigos e outras pessoas que não tinham nenhum vínculo de parentesco com ele. Os dois amigos, companheiros de barzinho, o visitaram. Não chegaram a falar com ele, pois ainda estava no CTI. A verdade é que ele era um solitário navegante por entre as colunas de concreto, a tinta negra do chão das ruas e os milhares de rostos que transitam pelas cidades como zumbis que riem, choram, ganham dinheiro, pagam dívidas, sonham, até se emocionam. Parecem viver intensamente, mas no fundo já estão mortos naquele caldo cotidiano repetitivo, sem nenhuma perspectiva de um passo à frente em sua evolução espiritual. Flutuam no universo das conquistas materiais e das variações de humor, entremeados por álcool, remédios e pregadores psicopatas. Certamente, outros têm os pés no chão e não se deixaram triturar pelas relações forjadas no egoísmo e, com os olhos voltados para dentro de si, enxergam o longo caminho que deverão seguir para o encontro consigo mesmo. Caminho que passa pela visão que os outros são parceiros, por isso a solidariedade é um transporte a ser compartilhado. Era assim que ele configurava o seu mundo.
Alguns dias depois, já recuperado, foi autorizado a voltar para sua casa. Perguntara, ao acordar, como havia chegado ali. Com paciência, a funcionária contou o que tinha ocorrido. “Uma médica?” Pensou. Aquela, cuja beleza quase o matara? Que fizera seu coração quase parar de vez? Também fizera seu coração voltar a bater? Que mulher seria essa? Como poderia estar tão senhora da sua vida, controlando as batidas do seu coração?
A funcionária do hospital sugeriu que ele fosse acompanhado por alguém até em casa. Ele disse que não tinha necessidade. Pegaria um táxi e chegaria bem em casa. Por precaução, a funcionária ligou para a médica que o levara. Ela pediu que o detivesse por mais uma hora que ela o apanharia e o levaria para casa. Fizeram-no esperar, sob pretexto de uma revisão em seu estado geral. Alguns exames seriam feitos.
Uma hora depois, uma voz feminina o interrompia quando telefonava em busca de um táxi:
- Olá! Vejo que o senhor já está em plena forma novamente. – Ele virou-se para ver que fenômeno sonoro era aquele que o fez gelar. Ela estava ali, falando com ele. A Mão dela ofereceu-se para um aperto e ele, ainda mudo, correspondeu.
- Muito prazer, Patrícia Gutierre.
- Prazer... Sérgio Navarro.
- Estou feliz porque o senhor está bem.
- Você salvou a minha vida. Como se pode agradecer isso?
- Não se preocupe, como médica é minha obrigação salvar vidas. Eu o levarei para casa.
- Mas...
- Tenho tempo suficiente, vamos.
Os dois dirigiram-se ao carro. Durante a viagem ele abriu um livro e rabiscou algumas palavras na primeira página. Deixando-o no carro disse:
- Este é para você. – Ela o pegou e o olhou:
- A Poesia e o Delírio... é seu?
- Totalmente inspirado em você. – Seu coração voltou a acelerar.
- Como assim? – Disse ela completamente tomada por uma surpresa que trazia uma mistura de medo, lisonja, desconfiança e perplexidade.


Continua...