quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Razão e Emoção

Ao nascer, trazemos, além das forças da natureza, uma carga arquetípica, toda a programação genética, os instintos e a pureza dos primeiros momentos da vida. A partir daí tem-se início a desconstrução desses fatores com a pressão cultural da super-estrutura. Começa o processo de formação da nossa personalidade que nada mais é do que a síntese desse confronto: natureza Xcultura. O que é reprimido se instala em zonas psicológicas remotas e o que é aceito utilizamos para a interação com os outros. Surge o ego. Uma deformação de nossa essência que apresentamos ao mundo para que não sejamos condenados pelas regras estabelecidas num acordo firmado ao longo da história da humanidade. Em termos coletivos esse acordo é útil. Individualmente ele é perverso, mutilador.
Assim, duas forças básicas passam a conduzir nossas ações: a razão e a emoção. A razão é moderadora, cultural, organiza e obedece aos interesses coletivos, sempre com a tendência para favorecer a quem detém o poder. A emoção é sanguínea, imediata, individual, embora possa “contaminar” outros em situações especiais quando surge a turba descontrolada. A emoção possui suas próprias regras, é desencadeada por fatores biofisicoquímicos e psicológicos; pode ser agressiva ou branda; silenciosa ou barulhenta. A razão é acionada para buscar um certo equilíbrio, para fomentar a adaptação. A emoção é acionada quando a adaptação já não é mais possível e o próprio corpo busca o reequilíbrio. A razão produz o comportamento ético, aceitável e sugere as bases do que é considerado o bem. A emoção é livre e não se submete aos princípios do bem o do mal. A razão vê o belo. A emoção o sente; A razão elabora as formas; a emoção processa os conteúdos; A razão define as técnicas; a emoção acrescenta os sentimentos. A razão organiza os pensamentos; a emoção os utiliza como disfarce. A razão prescreve o dever; a emoção noticia o desejo. A razão enobrece com as virtudes mas desumaniza a nossa essência; a emoção se degrada com os vícios mas fortalece a nossa alma; A razão intercepta a vontade; a emoção abre caminhos para ela; A razão luta contra a paixão; a emoção alia-se a ela; Somente no amor a razão e a emoção estão unidos. Por que o amor é o filho sublime da união entre razão e emoção.
Pouquíssimas são as pessoas que observam em que circunstâncias suas emoções surgem. No entanto é possível que, através de uma observação sistemática, possamos combinar razão e emoção, gradativamente, minimizando os efeitos negativos que causam atitudes impensadas, sem que nosso corpo sofra as conseqüências de uma repressão violenta à emoção.
No processo de adaptação ao convívio com as regras e com os outros reprimimos emoções que deveriam ser incorporadas à nossa personalidade. Cedo ou tarde elas ressurgem, deformadas, querendo ocupar o seu espaço. Devemos encontrar um método, uma forma, um procedimento, enfim, um jeito de reintegrarmos esses conteúdos que ficaram para trás, recuperando, assim, a nossa verdadeira essência. Esse caminho pode ser a auto-análise, a terapia, uma experiência alucinógena, atividade religiosa ou mesmo a observação sistemática. O importante é não atravessarmos toda a nossa vida, numa experiência única, sem buscarmos compreender quem somos nós.



Sestor Azimbara

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Continuação de A Poesia e o Delírio

Patrícia leu todos os cento e vinte poemas naquela noite e, a cada página, via-se através de metáforas, imagens e belas construções poéticas. Estava extremamente agradecida àquele homem que, tão amorosamente, dedicara sua atenção para escrever coisas tão lindas. Ao mesmo tempo, receava que tudo aquilo fosse uma obsessiva forma de se apaixonar; um comportamento doentio. Intuitivamente deixou seu coração decidir e resolveu ligar para agradecer e dizer o quanto estava orgulhosa por ter sido retratada em versos tão envaidecedores e carinhosos.
Enquanto pensava, folheava o livro até que percebeu, na última página, onde se apresentam dados sobre a editora e o ano, um pequeno texto:
“ Não sei se a vida me dará oportunidade de conviver com você e, certamente, se isso não acontecer eu viverei até o fim dos meus dias, mas o coração terá virado um castelo inútil de uma rainha que viveu somente eu meus delírios e em minha poesia. Contudo, se o destino, os Deuses, a sorte ou seja lá o que for, me aproximar de você e me for dada tal oportunidade, saiba que serei um homem pleno, um poeta absoluto, cuja poesia se humanizara e viveria ao seu lado, travestida de uma mulher linda. A vida teria, finalmente, iniciado para mim.”
Duas lágrimas rolaram no rosto de Patrícia. Ela fechou o livro e olhou para a longínqua distância que ainda existia entre o sentimento de gratidão e a possibilidade de corresponder àquele amor já tão maduro. Não saberia dizer se em algum momento isso aconteceria. Estava só, sem namorado. Sérgio era um homem mais velho, porém muito atraente. Demonstrara inteligência e sensibilidade. Talvez sua paixão fosse legítima e não fosse uma manifestação de um comportamento obsessivo.
Por volta de oito horas da noite ela ligou para Sérgio. O telefone dele chamou várias vezes. Insistiu e nada de resposta. Nove e meia ela ligou novamente. Nada. Decidiu que ligaria somente no dia seguinte. Melhor, passaria cedo em sua casa.
No dia seguinte foi à casa de Sérgio. No cartão tinha o endereço. Ela subiu e tocou a campanhinha. Não houve resposta. “Ele já saiu, tão cedo?” Pensou. Ligou novamente para o celular e ouviu a mensagem de fora de área ou desligado. No cartão tinha os telefones do jornal e da universidade mas ele não estava em nenhum dos dois. Ela dirigiu-se à clínica. Ao chegar, pediu à secretária para ficar tentando comunicação com os telefones dele. Durante todo o dia ela tentou e nada conseguiu. À noite, depois de ligar várias vezes, foi dormir um pouco preocupada. O que estaria acontecendo? Sérgio estaria fugindo dela? Viajara? Pensou até no pior...
Pela manhã foi à casa dele e perguntou aos vizinhos. Todos disseram que não o tinham visto mais. Um deles disse que ele deveria estar em casa pois o cadeado do portão, que protegia a porta, não estava trancado. Esta informação fez o estômago de Patrícia gelar. Imediatamente ligou para a polícia, se identificou e pediu que alguém fosse lá para arrombar a porta.
Meia hora depois, os policiais chegaram e arrobaram a porta. O corpo de Sérgio ocupava, semi-nu, o centro da sala. Uma música suave vinha do quarto, de um rádio que anunciava a solidão daquele homem, que finalmente tinha chegado a um termo.


Fim